domingo, março 11, 2007

Mudança




Agora estou aqui.

terça-feira, março 06, 2007

O Melhor Cliente Possível


Dentro de certo discurso em torno do design de comunicação é costume assumir-se, de forma mais ou menos subtil, que cultura e estética se opõem a funcionalidade ou economia, tal como demonstra esta passagem do Plano Estratégico do Centro Português de Design 2004-7 (disponível no site do CPD):

Muitas vezes associado a algo cultural, bonito ou apetecível, o design deve ser considerado como disciplina criadora de retorno, geradora ou potencializadora de melhorias na prática de valores intrínsecos, na funcionalidade ou acessibilidade de produtos e serviços.

Por esta ordem de ideias seria razoável esperar que, na promoção do design português, fosse dada mais ênfase ao design orientado para a área empresarial e comercial do que ao design realizado em contextos culturais ou académicos. No entanto, no catálogo da exposição (P) Portugal 1990-2005, comissariada pelo presidente do CPD, Henrique Cayatte, dos oitenta e seis trabalhos de design de comunicação presentes, representando cinquenta designers portugueses, 82.1 % são realizados para contextos culturais e académicos, 8.3% para empresas do estado, 4.8% para empresas privadas e 4.8% são trabalhos cujo cliente não é identificado. Por outras palavras – e paradoxalmente –, embora muitos designers afirmem o oposto, os designers portugueses mais conhecidos trabalham na sua grande maioria para a cultura.

É bastante provável que os orçamentos milionários estejam fora da cultura, na publicidade, na indústria, etc. – sem acesso a números concretos é impossível saber ao certo. Contudo, num pais como Portugal, sem nenhuma imprensa especializada dedicada ao design gráfico e com pouquíssima presença em publicações ou eventos internacionais, o design ao serviço da cultura acaba por ser sinónimo de promoção para os designers gráficos que o fazem. Desta forma, a cultura pode ser vista como uma perda calculada para captar a atenção de clientes mais rentáveis fora do contexto cultural. Estes clientes podem inclusivamente estar interessados em reposicionar as suas marcas ou produtos em termos de experiência cultural, de acordo com as tendências actuais do branding e do marketing.

No entanto, apesar das vantagens mútuas, a relação entre design e cultura não é propriamente pacífica. Do lado da cultura, nos últimos anos houve mudanças drásticas. O corte sucessivo e sistemático de subsídios estatais pressionaram as instituições a procurar mais apoios privados. Nestas condições, a melhor maneira de garantir patrocínios e mecenatos é estar em permanente expansão, inaugurando novos edifícios, exposições, serviços educativos, eventos, apelando a novos públicos, etc. À primeira vista, esta seria uma oportunidade dourada para o design gráfico. No entanto, existem aqui três problemas: em primeiro lugar, a ideia de que o bom design gráfico deve ser invisível, um serviço anónimo e humilde, que se limita a identificar e resolver problemas; em segundo lugar, a ideia de que o design gráfico facilita o acesso aos produtos culturais; em terceiro e último lugar, a ideia que o design ajuda a vender a cultura.

No primeiro caso, o problema do design, e neste caso não falo apenas do design português, é que se assume muitas vezes como um serviço genérico, uma espécie de secretariado gráfico, que pode ser exercido com variações mínimas para empresas de contabilidade, para fabricantes de automóveis, para museus, para revistas, etc. Na maioria dos casos, isto dá origem a um estilo por defeito – uma espécie de modernismo desproblematizado. A isto poderíamos opor o exemplo de Karel Martens, Wim Crowell ou Andrew Blauvelt que praticam um design que, apesar de discreto, racional e eficiente, não deixa de ser inteligente, articulado e, muitas vezes, experimental. Por outro lado, poderíamos também referir que um design discreto e genérico pode ajudar uma instituição como um museu a parecer neutra e estatal, mas, numa época em que o financiamento e o público dependem de visibilidade mediática, algumas instituições começam a preferir um género de design que pode ser promovido como um evento em si mesmo – a contratação de Stefan Sagmeister para realizar a identidade da Casa da Música demonstra isso mesmo.

No segundo caso, muitos designers, acreditam que uma das funções do design é facilitar o acesso à cultura, o que se resume muitas vezes à simplificação grosseira dos conteúdos – por exemplo, justificando a necessidade de ilustrar um texto por as pessoas já não lerem muito e preferirem mais imagens, em vez de usar a ilustração para acrescentar novas possibilidades de leitura ao texto. Ao insistir neste discurso, o design arrisca-se a tornar-se sinónimo de estupidificação e não de acessibilidade, levando muitas vezes a que os clientes prefiram um design mais genérico – o secretariado gráfico de que se falou mais atrás –, mas que interfira menos com os conteúdos. A esta concepção podemos contrapor a ideia do design como “uma forma de corporizar e salientar as complexidades e os aspectos intrincados do quotidiano”, como diz António Silveira Gomes, dos Barbara Says, ou como uma maneira de criar uma “simplicidade complexa”, como afirma Andrew Blauvelt.

O terceiro caso é, de certa maneira, uma continuação do segundo: o design apresenta-se como uma forma de vender a cultura, o que é problemático porque (proverbialmente) a cultura “não tem preço” – as instituições culturais podem ter a corda ao pescoço, mas não gostam necessariamente dessa sensação. Por outras palavras, o uso do discurso do marketing e do branding dentro da esfera cultural pode ser visto como uma perversão do seu carácter, do seu “valor intrínseco”. Neste caso, o design acaba por não ser visto como uma coisa essencial, orgânica, mas como um mal necessário, uma concessão temporária – no melhor dos mundos, a cultura vender-se-ia sozinha. Talvez por esta razão, existe actualmente uma tentativa de distanciar o design do discurso da publicidade, branding e marketing, aproximando-o mais de um contexto editorial ou curatorial, onde o designer não se limita a cuidar da apresentação fina dos conteúdos, mas participa no processo de criação e articulação de conteúdos desde o começo – mais uma vez, o trabalho de Andrew Blauvelt para o Walker Art Center (na imagem), ou o trabalho de António Silveira Gomes para a Zé dos Bois são bons exemplos.

Isto introduz um outro problema: embora se acredite que a formação dada nas nossas escolas é relativamente genérica quanto aos potenciais clientes, a verdade é que acaba por se valorizar os clientes empresariais e o design enquanto serviço. Se a grande maioria dos designers formados irá trabalhar em empregos de secretariado gráfico, é bem possível que os nossos designers mais conhecidos continuem a encontrar o seu sucesso na área da cultura. Talvez valha a pena então formar designers com uma consciência cultural mais sólida – se um designer treinado para trabalhar na área da cultura consegue realizar trabalhos com sucesso para o meio empresarial, o oposto é menos provável.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Culto Cargo


A maioria dos Cultos Cargo apareceu pouco depois da Segunda Guerra Mundial, quando a marinha americana começou a desmantelar as suas bases aeronavais no Pacífico Sul e o fluxo de mercadorias usado para manter os nativos satisfeitos foi cortado. Algumas tribos, descontentes com a gestão americana, resolveram tomar o assunto em mãos, e começaram a construir pistas de aviação em terra batida, com aviões falsos de bambu e torres de controle de madeira, onde sacerdotes, equipados com auscultadores de madeira, tentavam chamar os aviões dos deuses e a sua mercadoria sagrada.

À primeira vista, o Culto Cargo é um mal-entendido que os designers compreenderão talvez demasiado bem: uma fé desproporcionada na possibilidade de uma forma e de um conteúdo dependerem completamente um do outro, sem confusões, sem ambiguidades (para o designer, como para o sacerdote do Culto Cargo, a forma de um avião é tão importante para o seu funcionamento como o seu motor). Por outro lado, o Culto Cargo é também uma convicção, muito semelhante à dos designers, na capacidade de uma forma poder efectivamente convocar um “futuro” ou um “lá fora”.

Contudo, um Culto Cargo envolve também uma grande quantidade de trabalho para assimilar uma realidade estranha e os resultados podem ser interessantes e produtivos mesmo que não sejam – nem pretendam ser – autênticos. Por exemplo, o primitivismo na arte do começo do século XX foi uma espécie de Culto Cargo invertido: máscaras africanas reproduzidas na Europa como objectos de arte, isoladas do seu contexto religioso original.

Mais frequentemente, Culto Cargo é uma designação genérica e negativa para uma confiança excessiva em formalidades à custa de substância. Richard Feynman, por exemplo, chamava Ciência Culto Cargo a qualquer coisa que se assume como científica simplesmente porque segue superficialmente as formalidades da ciência. Nesse aspecto, o design não só é um grande consumidor como um grande produtor de Ciência Culto Cargo, apropriando-se de diagramas científicos, de mapas, e mesmo de jargão mais ou menos científico, como demonstra o mapa do Metro de Londres, inspirado num circuito eléctrico, e adaptado a todo o género de usos, mesmo que irónicos (o trabalho de Martí Guixé que ilustra este post) ou desadequados (o mapa falhado para o Metro de Nova Iorque de Massimo Vignelli ).

Evidentemente, a Ciência Culto Cargo não anda muito longe da boa e velha Burocracia que muitas vezes prefere ter um certificado a dizer que uma coisa funciona do que ter essa coisa a funcionar. Um bom exemplo disso é a crença dos designers portugueses de que escrever “designer” nos recibos verdes é o primeiro passo para o reconhecimento mais alargado na sociedade portuguesa. Na verdade, só demonstra que o design pode apregoar inovação e desenvolvimento à vontade, mas também ambiciona o seu lugarzinho no status quo, estando bastante disponível para produzir uma versão 2.0 da Burocracia, mais sexy, mais cool, mais adaptada ao século XXI. (Desde há algum tempo que se tenta chamar o grande Deus do Progresso e da Modernidade amontoando ortogonalmente pequenas porções de texto não-serifado, alinhado à esquerda.)

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Autoria, Roubo, Apropriação & Consumo


Há uns tempos, ao passar por uma sala de aula do primeiro ano de design, ouvi uma rapariga sussurrar a outra qualquer coisa do género: “Não acredito! Aquela vaca também usou um quadrado!” A acusação era sentida e ilustrava bem as estranhas expectativas que muitos designers têm em relação à originalidade. Geralmente, os mesmos que negam o “designer como autor”, que acham que ser chamado “artista” é o pior dos insultos, também acreditam – sem muita coerência – que a falta de originalidade é um problema.

Contudo, a originalidade depende do contexto e existem ocasiões em que compensa não ser original. Por exemplo, em 1978, o jovem Peter Saville, menos ingénuo que a nossa aluna de design, foi pedir emprego a Tony Wilson, fundador da Factory Records. Segundo se diz, em vez do portfolio levou o livro Pioneers of Modern Typography, de Herbert Spencer, roubado na biblioteca da escola. “Eu quero fazer coisas deste género”, disse, apontando para as reproduções dos trabalhos de Jan Tschichold. (Também apreciava Herbert Bayer, mas o colega Malcolm Garrett já o “usava” nas capas dos Buzzcocks, e havia, apesar de tudo, honra – ou pelo menos originalidade – entre ladrões.)

Actualmente, a palavra para descrever a situação seria apropriação, um termo mais elegante do que roubo, e menos obviamente irónico do que homenagem, mas o pormenor do livro ser mesmo roubado desintelectualizava a coisa, emprestando-lhe um restinho de agressividade e de transgressão juvenil, lembrando que até as apropriações são roubos e que todos os roubos envolvem violência. (Quando perguntaram a Saul Bass se achava que o logótipo do filme de Spike Lee Clockers era uma homenagem ao logótipo de Anatomy of a Murder, ele respondeu que “Homenagem é uma forma educada de roubar os mortos. Pois bem, eu não estou morto, e isto é plágio.”)

Numa apropriação, a autoria de um objecto é disputada entre dois ou mais agentes. Em alguns casos, o objecto pode ganhar um novo autor, que se junta ao anterior ou o substitui totalmente. Um bom exemplo é a capa de Peter Saville para o álbum Movement, dos New Order, baseada num cartaz de Fortunato Depero: é difícil não associar o original de Depero à cópia de Saville, indicando que uma apropriação pode alterar retroactivamente a experiência de um objecto.

Assim, a autoria não é necessariamente um acto de originalidade, mas um movimento de circulação dos objectos – de público a privado ou de uma posse para outra –, não interessando verdadeiramente onde este movimento começou – a sua origem –, ou onde irá acabar – a sua finalidade –, mas, como sugeriu Gilles Deleuze, o seu movimento. A qualidade de uma apropriação reside precisamente nas mudanças que ocorrem enquanto um objecto se move: em alguns casos esse movimento é produtivo, noutros não há verdadeiramente apropriação, mas apenas falta de imaginação. Neste caso, estamos a falar de consumo.

Um bom exemplo de design feito para ser consumido são os anuários da Graphis. Criados em 1952 pelo suíço Walter Herdeg, são antologias de trabalhos de todo o mundo, divididos por secções de acordo com o formato (poster, brochura, livro, identidade corporativa, etc.). A intenção da recolha não é histórica, critica ou teórica, mas pragmática, como o próprio Herdeg explica na badana da edição de 67/68:

um potencial enorme reside numa ideia luminosa. Uma centelha de génio gráfico, aplicada no sítio certo, pode transformar os gráficos de vendas em fogo-de-artifício e chamar a atenção de nações inteiras. Mas como pode um designer gráfico capturar esta centelha? Não há receita. A coisa mais parecida com uma receita é apresentada nas páginas deste livro – uma antologia de centelhas gráficas recolhidas dos mais talentosos incendiários gráficos de todo o mundo, e portanto, de certa maneira, um pequeno espectáculo de fogo-de-artifício.

A única receita – entenda-se “teoria” – para o design seria portanto a apresentação de exemplos fora do seu contexto, uma tarefa para a qual a Graphis Annual se adequava particularmente bem. Ao classificar os trabalhos por formato, secundarizava a sua autoria e a situação em que tinham sido concebidos, remetendo essa informação para dois grupos distintos de legendas. Para encontrar o autor e o cliente de um poster, por exemplo, era preciso ver primeiro qual era o número desse poster, procurar o número correspondente no grupo de legendas que indicavam o autor, para, de seguida, repetir o processo num segundo grupo de legendas para descobrir o cliente. Esta estrutura favorecia mais uma consulta superficial do que uma análise profunda, acabando por criar a mesma sensação de abundância excessiva e inconsequente que se tem em alguns centros comerciais: passeava-se distraidamente, parando aqui e ali – se estávamos à procura de uma ideia para um cartaz íamos à secção de cartazes, se queríamos um livro íamos à secção de livros. Curiosamente, os textos de introdução criticavam explícita ou implicitamente este esquema, queixando-se do excesso de imagens e de estímulos e apelando ao critério crítico das gerações futuras (são bons exemplos desta tendência os textos de Jerome Snyder na edição de 67/68 e de Massimo Vignelli na de 83/84).

Não sei quanto custava o livro que Saville roubou em 1978, mas a Graphis Annual de 1992 custava na altura quinze contos (hoje seriam cerca de quarenta contos). Estava fora do alcance do estudante comum, e acabava por ser um gigantesco e luxuoso iogurte com a data de validade bem gravada na lombada. Ir buscar-lhe ideias era tentador, mas levava inevitavelmente a que alguém sussurrasse: “Não acredito! Aquele boi também usou o Milton Glaser!”

quarta-feira, outubro 25, 2006

Barbara Says


Saiu, na colecção design & designer, da editora francesa Pyramid, uma monografia recolhendo os primeiros dez anos de trabalho dos Barbara Says, para a qual escrevi um texto de introdução.

Num artigo/entrevista incluído no livro What Graphic Design Is For?, de Alice Twemlow, António Silveira Gomes, membro fundador do grupo, diz: Graphic design can be seen as a way of embodying and pointing out the complexities and intrincacies of everyday life – é um bom resumo daquilo que me agrada no trabalho dos Barbara.

terça-feira, outubro 17, 2006

Linguagem & Design

Na edição portuguesa de The Shipping News, de E. Annie Proulx, os elementos habituais da capa de um livro – o nome e a biografia da autora, os habituais louvores e citações de imprensa, a referência à adaptação para filme, as fotografias dos seus actores, o nome da editora, etc. – aparecem sob a forma de notícias na primeira página de um jornal fictício, cujo cabeçalho é também o título do livro. Não são notícias feitas de texto simulado, mas de texto verosímil, legível, escrito de propósito para o efeito.


A falsa primeira página aparece pousada, ligeiramente oblíqua em relação à capa do livro, numa superfície branca, neutra, deixando ver a borda das páginas interiores do jornal, demonstrando que não é um mero arranjo tipográfico, mas um objecto sólido, real – uma capa dentro da capa: não apenas um jornal ficcional, mas a ilustração da própria ideia de jornal ficcional.

A capa é um caligrama onde o texto não assume apenas o papel de uma mancha gráfica exótica – uma biografia que se parece graficamente com uma notícia de jornal –, mas assume também um género literário diferente – uma biografia escrita como se fosse uma notícia de jornal. Há uma inversão subtil de papéis entre texto e design, pouco comum no âmbito do design gráfico português: o texto, habitualmente do lado dos conteúdos, assume aqui o papel de forma. Escrito para ajudar a compor a página, torna-se num mero auxiliar decorativo.

No entanto, segundo o ponto de vista mais tradicional – acriticamente associado ao Modernismo –, o design deveria ser apenas um contentor transparente para a linguagem, não a turvando, nem se misturando demasiado com ela – o melhor design seria invisível. Naturalmente, haveria alguma margem de manobra para objectos como este, desde que ficasse bem claro que são excepções.

Com efeito, é difícil fazer desta capa um caso geral, um exemplo a seguir. Seria difícil aplicar o seu conceito regularmente, universalmente: é demasiado conspícuo, evidente. Ficaria mal no papel de carta de uma empresa séria, ou no catálogo de um banco, situações onde o texto deve ser mesmo o conteúdo, sem ambiguidades. No fundo, esta capa parece confirmar, pela excepção, que o design se situa firmemente no exterior da linguagem, limitando-se à tarefa, ainda assim importante, de lhe facilitar a comunicação. Existem, no entanto, indícios de que a relação entre design e linguagem não é transparente, nem exterior, nem sequer pacífica.

Há cerca de um ano, reparei num cartaz da autoria do designer João Faria anunciando uma peça de teatro, azaña, una pasión española. Era bem feito, rigoroso e contido, mas, se não fosse o pormenor de ter um hífen em pleno título, duvido que me tivesse chamado a atenção. Dividir as palavras no título de um cartaz, com ou sem hífen, compensa: por um lado, permite aumentar dramaticamente o tamanho das letras, por outro, enfatiza o aspecto gráfico da palavra, tornando a sua leitura menos imediata. É óbvio que isto não funcionaria tão bem num manual de instruções, ou num boletim de voto, mas numa peça de teatro não há razão para o evitar, antes pelo contrário. No entanto, se as vantagens são claras, porque não aparecem mais hífenes ou palavras divididas em cartazes, capas de livros, etc.?


Os designers com quem falei confirmaram-me que uma das razão para a raridade dos hífenes é a dificuldade em convencer o cliente. O argumento mais comum invocado por este último é gramatical: não é correcto dividir um título e um hífen só deve ocorrer em texto corrido. Isto, como é evidente, é discutível: coisas válidas e óbvias no contexto da gramática podem não o ser no do design gráfico – o cartaz de azaña é um bom exemplo disso. Contudo, o design gráfico português mediano tem uma atitude muito subserviente em relação à gramática. Foi treinado para pensar naquilo que faz como sendo exterior à linguagem escrita e portanto é-lhe bastante difícil vencer uma discussão sobre gramática, mesmo que isso prejudique o resultado de um trabalho.

Porém, perder esta discussão pode ser conveniente para o design português. O conceito de mercado da língua, tal como foi concebido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, pode ajudar-nos a perceber porquê. Neste mercado, os diferentes usos da língua – dialectos, jargões, etc. – reposicionam-se constantemente entre si e em relação ao uso legítimo e oficial da língua. Este posicionamento acaba por reproduzir no plano da língua diferenças sociais, contribuindo também para as instituir e reforçar. Embora Bourdieu só tenha aplicado o modelo em contextos linguísticos, ele pode ser expandido para incluir o design gráfico. Como já vimos, uma das características do design português é a sujeição sistemática a regras gráficas com origem gramatical. Esta atitude beneficia a gramática oficial, legitimando-a, mas também beneficia o próprio design gráfico: se a língua é um sinónimo de identidade nacional, o design ao posicionar-se no exterior da língua, assume, no mercado de Bourdieu, o papel social de representante do “futuro” e do “lá fora”.

Mas esta postura traz também problemas. Mais atrás dissemos que é um erro associar acriticamente a ideia de design invisível ao Modernismo. O design gráfico Moderno propunha um ideal de neutralidade, é verdade, mas este não correspondia totalmente à neutralidade da própria língua oficial. Os dois conceitos entravam inúmeras vezes em conflito mais ou menos aberto. A neutralidade do design resultava sobretudo de uma confiança nova na capacidade das imagens e dos arranjos espaciais gráficos serem mais neutros do que a linguagem escrita, competindo portanto com a língua oficial. As vantagens das pretensões de neutralidade do design se cumprirem, mesmo que parcialmente, são evidentes. Segundo Bourdieu, “o recurso a uma linguagem neutralizada impõe-se sempre que se trata de estabelecer um consenso prático entre agentes ou grupos de agentes dotados de interesses parcial ou totalmente diferentes: quer dizer, evidentemente, em primeiro lugar, no campo da luta politica legítima, mas também nas transacções e nas interacções da vida quotidiana.”

Portanto, temos duas posições completamente opostas: por um lado, um design que acredita nas vantagens de se posicionar no exterior da linguagem, por outro, temos um design programaticamente interventivo em relação à linguagem. A diferença prática entre os dois torna-se muito evidente na diferença entre o estilo suíço original e a sua versão portuguesa, por exemplo. Os suíços não se limitavam a arrumar o texto em montinhos ortogonais depois de lhe mudarem a fonte para Akzidenz Grotesk, também o modificavam subtilmente, tornando-o mais espacial do que gramatical. Por exemplo, enquanto num cartaz português é comum a informação de um concerto ser apresentada gramaticalmente – “Dia 20 de Dezembro de 2006, às 17 e 30, no Pavilhão Rosa Mota” –, num cartaz suíço isto seria abreviado para uma lista de números e locais, eliminando todos os “de”, “às” e “no”. Em muitos cartazes portugueses, a dificuldade em combinar informação gramatical, não editada, com um esquema geral de inspiração suíça, resulta na redução radical no tamanho das fontes e na consequente perda de impacto e legibilidade. Neste aspecto, o cartaz de João Faria mostrado mais atrás é um bom contra-exemplo, onde nenhum destes problemas acontece.

Cada trabalho de design é politico, não no sentido de ter um tema politico ou de o cliente ser politico, mas no sentido de envolver sempre negociação, concessões e contrapartidas. Cada trabalho de design é resolvido numa área disputada pelo design e pelo língua. Desta forma, as funções do design não se limitam a assegurar a boa comunicação da língua, mas também põem a língua subtilmente em causa.

quarta-feira, setembro 20, 2006

O “Grafismo Interessante”

Nos domingos à noite, quando o Verão acaba, dedico sempre algum tempo a desejar com todas as forças que o Herman não volte de férias. É claro que ele acaba sempre por voltar e eu acabo sempre por apanhar com o habitual freak-show de actores brasileiros, dominatrixes que escreveram um livro, cançonetas alemãs absurdas, rábulas revisteiras, videntes pimba, etc. Desta vez o regresso foi ainda mais inquietante: de repente, a meio de um zapping, lá estava ele a falar de design gráfico! De óculos na ponta do nariz e de olhos franzidos, atestava que o livro Nacional e Transmissível, de Eduardo Prado Coelho, tinha um “grafismo interessante”.

Eu já tinha visto o livro na Fnac: era um objecto grande, de formato quase quadrado, e tudo nele dava a sensação de uma coisa nova a tentar imitar à pressão uma coisa antiga: na capa, tinha o título impresso sobre papel craft em grandes letras vectoriais a imitar stencil; no interior, o texto, composto em Bodoni, estava sobreposto a um sombreado digital amarelado, provavelmente a tentar imitar a textura do papel antigo; finalmente, uma assinatura demasiado parecida com um carimbo assegurava estarmos perante uma edição numerada e assinada. Como seria de esperar, o conjunto era uniformemente dissonante e confuso: gráficos digitais grosseiros misturavam-se com fotografias de cores saturadas e velhos recortes de jornais, sem nunca conseguirem atingir nem uma integração bem sucedida, nem um contraste interessante. Na melhor das hipóteses – pela escolha das fontes e pelo género de imagem – parecia uma versão digital e tosca da revista Kapa, da qual Luís Miguel Castro, o designer do livro, foi director artístico.

Todas as vezes que ouvi ou li a expressão “grafismo interessante” foi em contextos semelhantes: uma figura pública a falar de um objecto graficamente vistoso, que foge à norma, mas que é, em última análise, falhado. Já ouvi, por exemplo, esta expressão ser usada por Marcelo Rebelo de Sousa em relação à revista Egoísta, que é provavelmente o projecto mais desequilibrado de Henrique Cayatte. O logótipo geométrico e a capa impressa sobre papel mate ligam muito mal com o interior da revista, que usa uma fonte género máquina de escrever e cores saturadas impressas em papel uncoated; os cortantes, que são provavelmente a característica mais conhecida da revista, raramente são bem conseguidos ou mesmo pertinentes. Mais uma vez “grafismo interessante” parece querer significar um objecto arrojado, raro, luxuoso, que acumula sem muito critério uma grande quantidade de recursos técnicos e gráficos.

A própria expressão é datada: falar de “grafismo” era habitual há uns vinte anos, quando estava mais na moda roubar palavras aos franceses do que aos ingleses. Nessa altura, não se usava muito a palavra “design” em relação às coisas impressas. Os cursos de design de comunicação eram uma coisa recente e a maioria do trabalho era feito por auto-didactas ou pintores. Talvez por essa razão, “grafismo interessante” seja ainda agora usado em relação ao design feito por pintores (um bom exemplo disso é o logótipo de José de Guimarães para Portugal).

Por tudo isto, era quase inevitável que alguém dissesse que o Sol, o novo semanário de José António Saraiva, tem um “grafismo interessante”. Afinal possui todas as características da classe, o que já era dolorosamente visível na sua campanha publicitária. Nos anúncios era dado um grande destaque ao logótipo feioso do pintor Pedro Proença, que não consegue colar de forma alguma com o resto das opções tipográficas do jornal. Longe de ser um título ou uma palavra, acaba por ser apenas uma imagem isolada que só encaixa na capa rodeado de uma grande quantidade de espaço branco. Foi provavelmente concebido para se parecer com o já referido Portugal de José de Guimarães – que de resto é ironicamente uma cópia fanhosa do equivalente espanhol. A ideia seria conotar o Sol com a ideia de Portugal, uma hipótese que o uso de figuras associadas ao passado histórico português – Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Eusébio e José Hermano Saraiva – parece confirmar. A campanha ilustra também um certo regresso ao passado e aos valores seguros e universais, em vez da anunciada inovação – quem é que ainda pensa em Picasso como um símbolo da criatividade ou de Gago Coutinho e Sacadura Cabral como ícones do risco e da aventura? Tudo o resto são chavões visuais avulsos ou mal conseguidos – o bebé ilustrando o nascimento; o vestido levantado de Marylin; a sobrancelha erguida de Marcelo Rebelo de Sousa; etc. O facto de serem usadas versões ilustradas de imagens conhecidas parece querer sugerir um ponto de vista editorial próprio, uma certa distância em relação à realidade imediata, mas a intenção acaba por ser traída pela falta de qualidade dos desenhos de Nuno Saraiva, muito longe da sua forma habitual, que são desfavorecidos pela grande escala – muitas personagens só são identificáveis pela legenda.

A certa altura, um amigo meu disse-me que ainda tinha a esperança que tudo aquilo fosse um estratagema para enganar a concorrência – foi a opinião mais caridosa que ouvi sobre o assunto –, mas quando finalmente o jornal saiu, era bem pior do que a campanha levava a esperar. Era “grafismo interessante” do início ao fim: parecia uma versão mais pequena, mas também mais concentrada, das piores características do Expresso pré-remodelação. As páginas, bastante mais reduzidas que as do Expresso, pareciam ainda assim vazias , apesar do tamanho da fonte de texto ser dos maiores que já vi ser usado em jornais; a intenção é talvez fazer render o peixe, enchendo a bem ou a mal a maior quantidade de páginas possível – há também muito poucos artigos por página. Os títulos, reduzidos quase sempre a três palavras ou menos para poder aumentar o tamanho da fonte, são bastante prejudicados pelo aspecto vazio das páginas e pelo par de fontes escolhidas que simplesmente não combinam. A impressão geral é de dispersão: parece uma coisa a meio caminho entre o jornal e a revista. A organização editorial também não contribui para a seriedade da coisa: a secção “mulher - que - matou - o - marido - com - uma - caçadeira” chama-se “mundo real”(?) e o obituário chama-se “em paz”(???). A revista Tabu não é muito melhor, cheia de caixas coloridas inconsequentemente desalinhadas e de hierarquias tipográficas desequilibradas – se o jornal parece vazio, a revista parece demasiado cheia. Finalmente, o detalhe do logótipo mudar de cor com as estações do ano, só serve para reforçar “conceptualmente” o “interesse” do “grafismo”.

Na prática, o Sol só serviu para assustar a concorrência: o Expresso assumiu mais cedo uma remodelação que o tornou bastante mais legível e portátil, embora quase plagiando o The Guardian, com a sua banda azul no título e dupla-página central com fotografia de grande formato; o Público passou o Mil Folhas para a sexta-feira, minimizando os efeitos do cada vez mais péssimo Y (fica para o fim do ano a remodelação definitiva, da autoria do designer do The Guardian, Mark Porter); a , a revista do Diário de Notícias, é bem feita (embora não goste quer do logótipo, quer dos trocadilhos gráficos mal resolvidos a que dá origem), mas o jornal propriamente dito acaba por ser uma versão menos afirmativa do Público de há uns anos.

Mas, no fundo, o que assusta mais no Sol é a sua crença confiante de que o “grafismo interessante” corresponde efectivamente à maneira como os portugueses se vêem, e que afinal é o próprio design português que é “graficamente interessante”.